terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Texto: Ariano Suassuna - Desaforo

O texto a seguir foi publicado na Folha de São Paulo em 2/3/1999, mas continua atualíssimo, como tudo o que escreve o mestre Ariano:

FSP - 2mar1999 - Desaforo

ARIANO SUASSUNA

Um dia, sendo nós ainda jovens, dois amigos meus meteram na cabeça que eu deveria fazer um curso de literatura em algum país europeu. Falaram com o pessoal da Aliança Francesa, conseguiram passagem, hospedagem e vaga num curso em Paris. Já estavam cuidando do passaporte quando um deles me disse: "Você tem que ir porque, sem um curso na Europa, nenhum escritor brasileiro pode conhecer verdadeiramente o Brasil".Na mesma hora eu desmanchei a viagem.

Que mistério seria aquele? Se fosse assim, um jovem escritor alemão também jamais poderia entender a Alemanha sem fazer um curso no Brasil. E daí por diante passei a recusar todos os convites que recebia para viajar. Não queria incorrer no erro dos que vão fazer cursos fora e nunca mais se curam: ficam para sempre desajustados, porque nem são mais brasileiros nem se tornaram alemães ou americanos, como talvez sonhassem antes de ir.

Além disso, detesto viajar, e não vejo nenhuma necessidade de estar pra lá e pra cá, afastando-me do sossego da minha casa e do convívio com a família, tão importante para mim. Existem, até, alguns lugares que eu teria gosto de conhecer -Portugal, a Espanha, o norte da África, a Sicília, a Grécia, a França e outros. Mas estão muito longe. Eu iria, contente, ver o Mediterrâneo se ele fosse ali na Paraíba, no Rio Grande do Norte ou em Alagoas. E tem mais: de todos os lugares que citei, meu preferido é Portugal, por ser o único país da Europa onde o povo tem, como nós, o bom senso de falar português.É por isso, então, que nunca saí do Brasil.

Mesmo assim, no ano passado, a propósito do lançamento do "Romance d'A Pedra do Reino" em Paris, um jornalista francês disse que eu sou "extremamente culto". Confesso que fiquei orgulhoso. Não por ver reconhecida minha suposta cultura, mas por ter me tornado "culto" aqui: tal cultura, se existe, foi adquirida exclusivamente pelo estudante e professor, que fui, da Universidade Federal e da Católica, ambas de Pernambuco.

Pois bem: com data de 4 de fevereiro deste ano recebi, do Banco Interamericano de Desenvolvimento, sediado em Washington, um convite para participar do "Foro Desenvolvimento e Cultura", que vai se realizar em Paris nos próximos dias 11 e 12 de março. Com palavras desvanecedoras para mim, afirma-se, na carta, que minha contribuição "enriquecerá de maneira relevante as discussões e constituirá um testemunho do valor que a América Latina e o Caribe atribuem à sua rica herança cultural". Mas avisa-se, no fim, que o banco não consta com uma verba para financiar a participação dos debatedores, motivo pelo qual cada um de nós "deverá cobrir seus gastos de transporte, alojamento e permanência em Paris".

Ao tomar conhecimento do aviso, lembrei-me de Tobias Barreto, que, como eu, era um não-pernambucano de formação recifense. Certa vez, foi ele visitado pelos diretores de uma respeitável instituição cultural de Pernambuco. Chamando-o de "mestre", comunicaram-lhe que, por unanimidade, ele fora escolhido para pertencer a ela. Declarando-se muito honrado, Tobias aceitou. Mas quando acrescentaram que, no fim do mês, o encarregado das cobranças viria receber a primeira mensalidade, "o mestre", que era um desaforado, cortou logo. Disse: "Ah, e é pago, é? Então desisto: ser besta de graça, ainda vai, mas pagar pra ser besta é demais!".

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