quarta-feira, 24 de março de 2010

A Linguagem do Preconceito

O artigo abaixo é um pouco longo mas traz importantes considerações ao longo de todo o texto, motivo pelo qual o publico na íntegra.

A LINGUAGEM DO PRECONCEITO


Virou moda dizer que “Lula não entende das coisas”. Ou “confundiu isso com
aquilo”. É a linguagem do preconceito, adotada até mesmo por jornalistas
ilustres e escritores consagrados

Por: Bernardo Kucinski

O sociólogo José Pastore diz que Lula confunde “choque de gestão” com
contratação. É que para os conservadores “choque de gestão” é sinônimo de
demissão

Um dia encontrei Lula, ainda no Instituto Cidadania, em São Paulo, empolgado
com um livro de Câmara Cascudo sobre os hábitos alimentares dos nordestinos.
Lula saboreava cada prato mencionado, cada fruta, cada ingrediente.
Lembrei-me desse episódio ao ler a coluna recente do João Ubaldo Ribeiro,
“De caju em caju”, em que ele goza o presidente por falar do caju, “sem
conhecer bem o caju”. Dias antes, Lula havia feito um elogio apaixonado ao
caju, no lançamento do Projeto Caju, que procura valorizar o uso da fruta na
dieta do brasileiro.

“É uma pena que o presidente Lula não seja nordestino, portanto não conheça
bem a farta presença sociocultural do caju naquela remota região do
país…”, escreveu João Ubaldo. Alegou que Lula não era nordestino porque
tinha vindo ainda pequeno para São Paulo. E em seguida esparramou citações
sobre o caju, para mostrar sua própria erudição. Estou falando de João
Ubaldo porque, além de escritor notável, ele já foi um grande jornalista.

Outro jornalista ilustre, o querido Mino Carta, escreveu que Lula “confunde”
parlamentarismo com presidencialismo. “Seria bom”, disse Mino, “que alguém
se dispusesse a explicar ao nosso presidente que no parlamentarismo o
partido vencedor das eleições assume a chefia do governo por meio de seu
líder…” Essa do Mino me fez lembrar outra ocasião, no Instituto Cidadania,
em que Lula defendeu o parlamentarismo.

Parlamentarista convicto, Lula diz que partidos são os instrumentos
principais de ação política numa democracia. Pelo mesmo motivo Lula é a
favor da lista partidária única e da tese de que o mandato pertence ao
partido. Em outubro de 2001, o Instituto Cidadania iniciou uma série de
seminários para o Projeto Reforma Política, aos quais Lula fazia questão de
assistir do começo ao fim. Desses seminários resultou um livro de 18
ensaios, Reforma Política e Cidadania, organizado por Maria Victória
Benevides e Fábio Kerche, prefaciado por Lula e editado pela Fundação Perseu
Abramo.

Clichês e malandragem

Se pessoas com a formação de um Mino Carta ou João Ubaldo sucumbiram à
linguagem do preconceito, temos mais é que perdoar as dezenas de jornalistas
de menos prestígio que também dizem o tempo todo que “Lula não sabe nada
disso, nada daquilo”. Acabou virando o que em teoria do jornalismo chamamos
de “clichê”. É muito mais fácil escrever usando um clichê porque ele
sintetiza idéias com as quais o leitor já está familiarizado, de tanto que
foi repetido. O clichê estabelece de imediato uma identidade entre o que o
jornalista quer dizer e o desejo do leitor de compreender. Por isso, o
clichê do preconceito “Lula não entende” realimenta o próprio preconceito.

Alguns jornalistas sabem que Lula não é nem um pouco ignorante, mas propagam
essa tese por malandragem política. Nesse caso, pode-se dizer que é uma
postura contrária à ética jornalística, mas não que seja preconceituosa.
Aproveitam qualquer exclamação ou uso de linguagem figurada de Lula para
dizer que ele é ignorante. “Por que Lula não se informa antes de falar?”,
escreveu Ricardo Noblat em seu blog, quando Lula disse que o caso da menina
presa junto com homens no Pará “parecia coisa de ficção”. Quando Lula disse,
até com originalidade, que ainda faltava à política externa brasileira achar
“o ponto G”, William Waack escreveu: “Ficou claro que o presidente
brasileiro não sabe o que é o ponto G”.

Outra expressão preconceituosa que pegou é “Lula confunde”. A tal ponto que
jornalistas passam a usar essa expressão para fazer seus próprios jogos de
palavras. “Lula confunde agitação com trabalho”, escreveu Lucia Hippolito.
Empregam o “confunde” para desqualificar uma posição programática do
presidente com a qual não concordam. “O presidente confunde choque de gestão
com aumento de contratações”, diz o consultor José Pastore, fonte habitual
da imprensa conservadora.

Confunde coisa alguma. Os neoliberais querem reduzir o tamanho do Estado, o
presidente quer aumentar. Quer contratar mais médicos, professores, biólogos
para o Ibama. É uma divergência programática. Carlos Alberto Sardenberg diz
que Lula “confundiu” a Vale com uma estatal. “Trata-a como se fosse a
Petrobras, empresa que segundo o presidente não pode pensar só em lucro, mas
em, digamos, ajudar o Brasil.” Esse caso é curioso porque no parágrafo
seguinte o próprio Sardenberg pode ser acusado de confundir as coisas, ao
reclamar de a Petrobras contratar a construção de petroleiros no país,
apesar de custar mais. Aqui, também, Lula não fez confusão: o presidente
acha que tanto a Vale quanto a Petrobras têm de atender interesses
nacionais; Sardenberg acha que ambas devem pensar primeiro na remuneração
dos acionistas.

Filosofia da ignorância

A linguagem do preconceito contra Lula sofisticou-se a tal ponto que
adquiriu novas dimensões, entre elas a de que Lula teria até problemas de
aprendizagem ou de compreensão da realidade. Ora, justamente por ter tido
pouca educação formal, Lula só chegou aonde chegou por captar rapidamente
novos conhecimentos, além de ter memória de elefante e intuição. Mas, na
linguagem do preconceito, “Lula já não consegue mais encadear frases com
alguma conseqüência lógica”, como escreveu Paulo Ghiraldelli, apresentado
como filósofo na página de comentários importantes do Estadão. Ou, como
escreveu Rolf Kunz, jornalista especializado em economia e também professor
de filosofia: “Lula não se conforma com o fato de, mesmo sendo presidente,
não entender o que ocorre à sua volta”.

Como nasceu a linguagem do preconceito? As investidas vêm de longe. Mas o
predomínio dessa linguagem na crônica política só se deu depois de Lula ter
sido eleito presidente, e a partir de falas de políticos do PSDB e dos que
hoje se autodenominam Democratas. “O presidente Lula não sabe o que é pacto
federativo”, disse Serra, no ano passado. E continuam a falar: “O presidente
Lula não sabe distinguir a ordem das prioridades”, escreveu Gilberto de
Mello. “O presidente Lula em cinco anos não aprendeu lições básicas de
gestão”, escreveu Everardo Maciel na Gazeta Mercantil.

A tese de que Lula “confunde” presidencialismo com parlamentarismo foi
enunciada primeiro por Rodrigo Maia, logo depois por César Maia, e só então
repetida pelos jornalistas. Um deles, Daniel Piza, dias depois dessas falas,
escreveu que “só mesmo Lula, que não sabe a diferença entre presidencialismo
e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é
o mesmo que ser uma democracia no seu sentido exato”.

Preconceito é juízo de valor que se faz sem conhecer os fatos. Em geral é
fruto de uma generalização ou de um senso comum rebaixado. O preconceito
contra Lula tem pelo menos duas raízes: a visão de classe, de que todo
operário é ignorante, e a supervalorização do saber erudito, em detrimento
de outras formas de saber, tais como o saber popular ou o que advém da
experiência ou do exercício da liderança. Também não se aceita a
possibilidade de as pessoas transitarem por formas diferentes de saber.

A isso tudo se soma o outro preconceito, o de que Lula não trabalha. Todo
jornalista que cobre o Palácio do Planalto sabe que é mentira, que Lula
trabalha de 12 a 14 horas por dia, mas ele é descrito com freqüência por
jornalistas como uma pessoa indolente.

Não atino com o sentido dessa mentira, exceto se o objetivo é difamar uma
liderança operária, o que é, convenhamos, uma explicação pobre. Talvez as
elites, e com elas os jornalistas, não consigam aceitar que o presidente, ao
estudar um problema com seus ministros, esteja trabalhando, já que ele é ”
incapaz de entender” o tal problema. Ou achem que, ao representar o Estado
ou o país, esteja apenas passeando. Afinal, onde já se viu um operário, além
do mais ignorante, representar um país?

Fontes: João Ubaldo Ribeiro, O Estado de S. Paulo, 2/9/2007. Blog do Mino
Carta, 16/11/2007. Blog do William Waack, 2/12/2007. Texto de Lúcia Hipólito
no UOL, 24/07/2007. José Pastore, artigo no Estadão, 11/12/2007. Carlos
Alberto Sardenberg, “De bronca com o capital”, Estadão, 10/12/2007. Filósofo
Paulo Ghiraldelli, Estadão, 29/8/2007. Rolf Kunz, “Lula, o viajante do
palanque”, Estadão, 29/11/2007. José Serra, em Folha On Line, 1º/8/2006, em
reportagem de Raimundo de Oliveira. Gilberto de Mello, escritor e membro do
Instituto Brasileiro de Filosofia, no Estadão de 2/8/2007, reproduzido no
site do PSDB. Everardo Maciel, na Gazeta Mercantil de 4/10/2007. Rodrigo
Maia, em declaração à Rádio do Moreno, 6/11/2007, 17h20. César Maia em seu
blog, 12/11/2007. E Daniel Pizza em texto do Estadão de 2/12/2007.

Bernardo Kucinski é professor titular do Departamento de Jornalismo e
Editoração da ECA/USP. Foi produtor e locutor no serviço brasileiro da BBC
de Londres e assistente de direção na televisão BBC. É autor de vários
livros sobre jornalismo.

Publicado no Blog do Nassif e repassado por Fernando Arruda.

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